Não conheci Eusébio dos cromos, o tal passatempo de coleccionar figurinhas
dos craques do futebol. Conheci Eusébio com os meus 8 anos de idade, aluno da
instrução primária na Escola João Belo, no bairro da Malhangalene. Na rua de
Aveiro mais propriamente. Do lado esquerdo da rua (para quem desce) os prédios.
Do lado direito, as casas de madeira e zinco. Numa delas vivia eu. Na outra
vivia o Carlos Santos, que ficou famoso como extremo esquerdo do Desportivo e
que no grupo dos amigos do bairro e do futebol ficou conhecido como Cadeca.
Eusébio e Cadeca eram unha e carne. Aos dois se juntava Madala Gaíssa,
primo de Augusto Matine. O “King”, como lhe chamou o Fernando Lima nos seus
“espinhos da micaia”, dia sim, dia não, saído da sua Mafalala, passava pela Malhangalene.
Parava na porta de Cadeca, metia dois dedos de conversa e lá iam os dois para a
baixa da cidade. Um para o Sporting e o outro para o Desportivo. Rivais mas
amigos. Foi ali na Malhangalene, à porta de casa, ainda menino da instrução
primária que conheci Eusébio.
Eu não era muito dado a deslocar-me à parte baixa da cidade para vêr os
jogos do Desportivo, Sporting ou Ferroviário, porque ali mesmo ao virar da
esquina tinha a malta do Atlético. Era só atravessar a Rua do Porto e lá
estavamos nós (os putos daquela época) com dirigentes e jogadores que eram
referência naquele clube. No futebol, entre outros, o Jorge de Oliveira Calado,
conhecido por Papua, que acabou por ingressar no futebol profissional ao
serviço do Benfica. No basquetebol, entre outros, sem dúvida os Morgados ou os
Wilsons. Isto para não falar de dirigentes desse clube como eram os casos do
Morgado (pai) , do Alberto Costa, do Valentim Gomes da Silva, e de tantos
outros.
Eu não vi Eusébio jogar em Moçambique. Soube apenas que tinha sido campeão
de juniores pelo Sporting em 59/60 ao lado de outras figuras gradas do futebol
desse tempo, como eram os casos do Braga Borges, Florentino Bessa, Roberto
Mata, Delfim Madala ou Morais Alves e que depois disso tinha rumado para
Lisboa, por influência de Otto Glória, o brasileiro que orientou o Belenenses
na sua digressão por Moçambique, e que no ano seguinte se mudaria para a Luz.
Daí o seu interesse pelo “pantera negra”. Depois disso as peripécias que se
seguiram após a sua chegada a Lisboa, (por demais relatadas em quase todos os
meios de comunicação social) com uma carta na mão, da sua mãe, dirigida a Mário
Coluna, com o pedido expresso para que “tomasse conta do seu filho”.
Nos finais da década de 60, já do outro lado do mundo, Eusébio cruzava
semanalmente o meu imaginário, porque nessa época, a GOLO, depois dos relatos
dos jogos de futebol do nosso campeonato, transmitia, através do Rádio Clube de
Moçambique, os relatos dos desafios do então chamado “campeonato nacional”. E
aí, semanalmente, Eusébio entrava pela minha casa, através das ondas sonoras do
RCM, sem sequer pedir licença. Entrava em minha casa e pela casa de muitos
citadinos e adeptos do futebol também pela via dos cromos, o tal passatempo de
coleccionar figurinhas dos craques do futebol e que eram vendidos nas nossas
cidades nas décadas de 60 e 70.
Como profissional de comunicação social, como relator desportivo, surge, já
no início da década de 70, a possibilidade de eu relatar jogos do Campeonato
Nacional Português. Em gozo de licença graciosa, a GOLO permite a minha
deslocação a Lisboa. Passo a integrar (por um período de 3 meses) a equipa de
relatores desportivos da Delegação daquela Agência de Publicidade em Lisboa, fazendo
parceria com Paulo Terra e Mário Sérgio, nas transmissões directas de vários
estádios portugueses. Luz, Alvalade, Coimbra, Belenenses, Setúbal, Antas, etc. E
nesses relatos, Eusébio, o tal Eusébio que eu conheci nos finais dos anos 50,
voltava ao meu imaginário. Nos jogos do campeonato, nas entrevistas que lhe fiz
após os jogos ou ainda na memorável festa de despedida do guarda redes dos
“encarnados”, de seu nome Costa Pereira, também ele moçambicano de Nacala, no célebre
Benfica – Real Madrid realizado no Estádio da Luz.
Um re-encontro importante foi quando Eusébio, na companhia da sua esposa
Flora Bruhein, é recebida pelo Presidente Samora Machel. Quebra-se o gelo nas
relações do “rei” com o seu país. O medo de Eusébio dissipa-se. Na sequência
desta visita é-lhe atribuida uma casa e um passaporte dilplomático.
Quando Chiquinho Conde chega a Lisboa em 1987 para jogar no Belenenses, lá
estava Eusébio. Convidou-nos (eu, Chiquinho Conde, Eugénio Corte Real, que era
o Delegado da Rádio Moçambique em Lisboa, e o Eng. Pedro Loforte, dirigente do
Maxaquene)) para um almoço no Tia Matilde, o “covil” dos encarnados em matéria
de gastronomia. Quando o Costa do Sol fez um estágio na Figueira da Foz,
Eusébio esteve presente. Assistiu a um dos treinos da equipa “canarinha”.
Por trás deste Eusébio afável e humilde havia um outro Eusébio. O Eusébio
do “Estado Novo” em Portugal.
Um artigo do jornal “Público” que tive a oportunidade de lêr, é bem
elucidativo sobre a história do “pantera negra” que segundo o jornalista Nuno
Domingos apresenta um conjunto de etapas.
“Ela começa no Bairro da Mafalala na
Lourenço Marques colonial, onde vivia com a mãe Elisa num contexto de pobreza
honrada, e passa pelos jogos de bairro e a equipa dos "brasileiros",
as idas à escola, o deslumbramento com o centro da cidade colonial, que pouco
conhecia, a entrada no futebol local, a transferência atribulada para o Benfica
e os diversos passos da brilhante carreira profissional. Nesta história, a
lista impressionante de feitos desportivos é intervalada pelo relato do
casamento com Flora e pela incorporação de Eusébio, em 1963, no Exército
português, profusamente fotografada e utilizada como propaganda. A incorporação
militar, o casamento e a vida familiar contribuíam para a construção quase
perfeita da biografia de um indivíduo assimilado, preocupado com o trabalho e
com a família e plenamente integrado no Portugal de Salazar, um jovem de
origens desfavorecidas que, apesar da sua notoriedade, continuava a perceber o
seu lugar social.”
Eusébio ... o “rei” que foi a enterrar no Dia dos Reis.
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